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Sharenting: os efeitos de expor crianças nas redes – 04/11/2025 – Equilíbrio

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“Não lembro o exato momento em que as câmeras começaram a gravar. Só sei que um dia éramos uma família normal e, no dia seguinte, havia uma câmera ruim constantemente virada na nossa direção, documentando cada movimento nosso para o consumo de estranhos na internet.” Esse depoimento é de Shari Franke em seu livro “A Casa Da Minha Mãe”. Nele, ela conta os infortúnios de ter crescido em um ambiente em que tudo era controlado.

Ruby Franke, mãe de Shari e de mais cinco filhos, criou em 2015 um canal no YouTube para documentar a vida de sua família e dar dicas de criação das crianças, o “8 passengers”. Em 2023, Ruby foi condenada a 15 anos de prisão por abuso infantil.

Poderia ser um roteiro de filme de terror, mas é uma história real que mostra que nem sempre o que está em frente às câmeras retrata a realidade. Com a ascensão dos vlogs no YouTube, que são os blogs em vídeo, é comum encontrar canais que mostram o dia a dia de famílias inteiras.

No livro, a primogênita da família Franke conta como a mãe roteirizava tudo o que seria gravado, e que todos deveriam estar com uma “máscara constantemente sorridente”. Mesmo os momentos mais constrangedores para uma pré-adolescente, como quando teve a sobrancelha deformada pela mãe em um vídeo, era registrado e postado para milhares de seguidores.

A necessidade de expor cada detalhe da vida se tornou uma característica da nossa sociedade, diz a historiadora e socióloga Laura Hauser. “O digital, principalmente a ascensão das redes sociais, tem mudado muito rápido o comportamento das pessoas em questões que são muito fundamentais, como a parentalidade.”

Para Hauser, que pesquisa comunicação e semiótica, esse comportamento exibicionista é exercer a parentalidade como uma performance. Dessa forma, o “ser um bom pai” se confunde com postar constantemente sobre isso.

A história da família Franke tem algo em comum com outras histórias semelhantes: a figura exibida é normalmente a mãe. Ao longo do livro, Shari descreve a mãe como um figura manipuladora, mas retrata o pai como um ser submisso, quase como outra vítima.

“Isso é uma repetição do que a nossa sociedade, de uma maneira geral, imagina que o cuidado para a criança deve ser dado pela mãe. Mas e a proteção que esse pai não ofereceu?”, questiona a psicanalista Camila Menezes, apontando que a negligência também é uma violência.

Situações assim podem deixar marcas e sequelas irreparáveis nas crianças, ressalta a psicanalista. Ela aponta que o impacto pode não aparecer de imediato, mas sim na construção de identidade desse sujeito ao longo do tempo. “É uma sensação de abandono, porque aquele adulto que deveria me proteger e cuidar de mim, me expôs.”

A falta de noção do que é público e o que é privado, diz a psicanalista, pode afetar a percepção de comportamentos predatórios, fazendo com que a pessoa não estabeleça limites e permita ser invadida de diversas formas.

“Inclusive o valor desse sujeito vai estar atrelado ao que ele produz, a quantidade de curtidas que ele recebe, as visualizações, a quantidade de parcerias que a gente consegue fechar. Então tudo fica direcionado a uma prática mercantil, e ele nem sabe mais se é um sujeito ou um produto“, afirma Menezes.

A história de Shari, no entanto, vai além. Nos bastidores, aconteciam episódios de manipulação, chantagem, violência física, privação de comida e condições precárias de sono.

O caso da família Franke não significa que todos os pais que expõem seus filhos nas redes sociais são criminosos, mas toda exposição tem um impacto prejudicial para os filhos. Outra lição que a história sombria dos Franke traz é a de que o que vemos na internet não é necessariamente o que se passa nos bastidores.

“É puro espetáculo, é performance”, lembra Hauser. “Todos nós temos máscaras sociais, mas a grande questão é que as crianças não estão tendo a formação de quem são fora das câmeras.”

E o conteúdo, diz a socióloga, não é qualquer um. A economia da atenção —conceito criado pelo economista alemão Herbert Simon, vencedor do Nobel de 1978, para descrever a competição por atenção em um mundo saturado de informação— sobrevive do sensacionalismo. E é nesse conteúdo que as crianças estão moldando suas identidades.

“A pior parte? A internet adorava. O que, é claro, a incentivava a postar mais”, diz Shari em uma passagem do livro.

Não só como forma de entretenimento, mas também o telespectador que critica está reforçando os impactos, diz Menezes, porque a criança pode se sentir culpada de ter causado mal aos pais. “O ideal seria que a gente, como público, também se regulasse, olhasse para isso e falasse ‘eu não vou participar disso’.”

“Não existiria economia de atenção se não houvesse a nossa atenção”, lembra Hauser. Mas ela também observa que há uma questão maior: a responsabilidade das big techs, as grandes companhias de tecnologia que controlam as redes sociais, já que hoje existe um sistema coercivo que nos prende a essas plataformas.

A advogada Nuria López explica que, para proteger as crianças e adolescentes, o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo. “A gente já tinha o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e agora tivemos a aprovação do ECA Digital, que traz novas obrigações para as empresas que fornecem serviços ou produtos direcionados ou acessíveis para esse público.”

A lei do ECA Digital foi sancionada pelo presidente Lula em setembro deste ano e traz mecanismos para garantir a proteção das crianças e dos adolescentes nas redes sociais e na internet. Ela obriga que os perfis juvenis tenham configurações protetivas, restringindo contatos com desconhecidos, personalização de feeds e geolocalização.

“Os pais ou responsáveis legais têm uma responsabilidade importante”, afirma López. “É uma nova realidade que os filhos deles enfrentam e, às vezes, eles nem estão cientes dos riscos.”

Por outro lado, quando são os pais os responsáveis pelo abuso, a legislação e a sociedade devem se manter atentos, diz a advogada. “Nesse sentido, o digital é mais um meio de exploração que infelizmente, já acontecia no ambiente físico.

Como diz Shari Franke, na reta final de seu livro: “De certa forma, representamos a primeira prova verdadeira e contundente de como as coisas podem dar errado em um mundo dominado pelas redes sociais em que as crianças são felizes e o conteúdo é rei.”

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