sexta-feira, novembro 28, 2025

Nem todo tesão se vende em farmácia – 08/11/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] Reduzido a hormônio e desempenho, o desejo perde sua dimensão simbólica e criadora. A libido que Jung viu como energia da alma é outra. Na era da eficiência e da dopamina instantânea, o corpo virou campo de experimentos químicos e o desejo, um produto de prateleira. O tesão pela vida — força que move arte, afeto e criação— não se compra, exige presença e escuta do sentido.

É uma tragicomédia dos tempos modernos. O homem e a mulher, na ânsia de performar em tudo, correm às farmácias. Buscam a pílula mágica do foco, do corpo esculpido, da virilidade eterna, do desejo sem fim. Surge o ‘kit farmacológico de Faria Limers’: dextroanfetamina para a concentração, injeções para a barriga sumir, comprimidos para manter ereção e libido.

A máquina humana se exibe funcional e brilhante. Mas e o espírito? O tesão pela vida não vem com bula. Ele vive em territórios que a química não alcança. A vida não é enfermidade a ser curada, é mistério a ser vivido.

Nesse frenesi fálico de performance laboral e sexual, esquecemos a vitalidade que pulsa além do quarto. Reduzir desejo e sexualidade à fisiologia é medir o oceano pela espuma. É a pressa por satisfação imediata, um fast-food do prazer que alimenta pouco e amplia o vazio.

A medicalização, vendida como solução, empobrece a experiência da vida em nome de uma eficiência técnica.

Foi neste ponto que Jung divergiu de Freud. Se o mestre vienense via a libido como força primordialmente sexual, Jung ampliou o mapa. A energia psíquica é caudalosa; a libido, apenas um afluente. O psiquismo não cabe em diagnósticos estreitos nem em prescrições ansiosas. Ele irriga arte, amizade, política, contemplação, coragem, ideais e a feitura do mundo.

É nesses “outros falos” que reside a vida. Símbolos de potência criadora que uma cultura apressada ignora. Queremos atalhos, mas eles corroem o caminho. A pergunta incômoda persiste: ao terceirizar o sentir aos fármacos, o que perdemos da vida?

A caneta fecunda a página em branco e engravida o mundo de ideias. A enxada abre a terra e, além do pão, convoca memórias e colheitas futuras. A voz desperta coragem e empatia. O olhar reconhece a dor e legitima a existência do outro. As mãos constroem lares, cozinham afetos, curam feridas que a ciência não alcança.

Há ainda o silêncio, que não é vazio, mas convite ao encontro consigo. E o serviço, generoso e desinteressado, que devolve ao comum o que nos foi dado. Tudo isso é Eros em sentido amplo: força de ligação, sentido e forma. É o casamento da centelha divina com a trama do mundo. O resto é o ruído insosso de uma máquina afinada por uma medicalização que promete muito e entrega pouco.

Nossa cultura, doutora em atalhos, esqueceu a beleza do caminho. Ensina a consumir o agora, não a mergulhar nas profundezas. Viciados em botões digitais, desaprendemos a abrir frestas da alma. O resultado é uma legião desapaixonada, anestesiada por likes e notificações que prometem preencher um buraco que só cresce.

Os comprimidos erguem pontes entre desejo e fisiologia, mas não tocam a alma. É no recolhimento do si-mesmo, longe dos aplausos do ego, que pode surgir o destino mais autêntico. O processo de individuação é uma pedagogia do tesão: a arte de investir a energia psíquica não onde a plateia aplaude, mas onde a alma pede.

Tesão pela vida não se compra; conjuga-se. É verbo que exige coragem, presença e escuta do sentido. É a ousadia de buscar o que faz sentido.

Se for para quebrar regras, que seja para libertar o desejo da pressa e do desempenho. Se for para reinventar, que seja a forma de amar — o mundo em sua complexidade, o outro em sua alteridade, nós em nossa inteireza.

Brindemos aos “outros falos” que fecundam páginas, transformam hortas em jardins de sabedoria, inspiram canções e constroem cidades que abrigam a diversidade humana.

E quando o corpo, finito, pedir ajuda técnica, que a receba com gratidão e ciência. Mas que o coração não terceirize sua aventura sagrada aos balcões da farmácia nem a qualquer medicalização do viver.

Afinal, o que cura a alma não é comprimido, é caminho. Não é protocolo, é encontro. A medicalização pode ser necessária, mas não soberana. O corpo aceita o filtro do laboratório; a alma, o risco do real. O fármaco pode sustentar o arco da ponte, mas o desejo precisa de chão, história e símbolo.

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