O Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF1) acolheu um recurso da União para manter liberado o abate de jumentos no país, em uma ação movida por ONGs que pedem o fim da prática no Brasil.
Na petição inicial, os autores citaram razões éticas, culturais, sanitárias e ambientais para exigir a proibição do abate, mencionando casos de maus-tratos na captura e transporte dos animais, além do risco de extinção da espécie. O pedido à Justiça incluía ainda a criação de santuários para assegurar aos animais “os direitos à vida, à liberdade e à integridade física”.
Atualmente o único estado brasileiro em que a atividade é realizada é a Bahia, onde há frigoríficos habilitados para exportação da carne asinina para a China, principal mercado consumidor do produto no mundo.
O país asiático tem interesse no chamado eijao, colágeno extraído da pele dos jumentos e utilizado na medicina tradicional chinesa em razão de seus supostos efeitos terapêuticos.
Apesar da demanda crescente, não há cadeia produtiva de gado asinino no Brasil. Os jumentos abatidos são capturados geralmente em estradas ou disponibilizados por pequenas propriedades rurais na Bahia ou nos vizinhos Paraíba, Piauí, Maranhão e Pará, entre outros, para serem levados aos frigoríficos baianos.
Durante o processo, iniciado em 2018, a 1.ª Vara Federal Cível da Bahia chegou a suspender, de forma liminar, a continuidade do abate dos asininos, mas a decisão foi revertida liminarmente em 2019 pela Presidência do TRF1, em dois recursos, um interposto pela União e outro pelo município de Amargosa (BA).
Na decisão, publicada no último dia 5, o desembargador Eduardo Martins, relator do caso, afirmou que os abates feitos na indústria frigorífica, certificada com Serviço de Inspeção Federal (SIF), ocorrem dentro dos padrões sanitários e de bem-estar animal regulamentados pela legislação vigente e passam por constante inspeção do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).
Segundo o despacho, não foram comprovadas irregularidades no transporte, na fiscalização e nos abates. A Justiça reconheceu ainda que a proibição anterior trouxe prejuízos para uma atividade lícita, regulada e fiscalizada na Bahia, que gera recursos para a população envolvida e para o estado.
“Eventuais ilegalidades devem ser apuradas e corrigidas caso a caso, não servindo para proibição geral da atividade lícita”, diz o desembargador. “Em cenário regulatório, o meio menos gravoso é a fiscalização e correção pontual (por exemplo, exigências de transporte e bem-estar), não a interdição genérica.”
Frente Nacional de Defesa dos Jumentos vai recorrer
Defensor do fim do abate de jumentos, Yuri Fernandes Lima, especialista em direito animal e sócio do Bruno Boris Advogados, ressalta que a decisão em vigor não é definitiva.
No processo que tramita na Justiça Federal, ele representa as ONGs União Defensora dos Animais, a Rede de Mobilização pela Causa Animal (Remca), o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, a SOS Animais de Rua e a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, partes autoras da causa.
“A Frente Nacional de Defesa dos Jumentos já apresentou embargos de declaração, que ainda estão pendentes de julgamento. Após esse recurso, novos recursos serão interpostos ao Superior Tribunal de Justiça [STJ] e ao Supremo Tribunal Federal [STF]. Além disso, a ação civil pública em primeiro grau ainda aguarda o julgamento pela Justiça Federal de Salvador”, diz o advogado.
Ele considera como “grandes” as chances de sucesso das ações e recursos por fatores que, segundo ele, revelam a gravidade da situação. Entre elas a natureza extrativista da atividade, ou seja, a inexistência de uma cadeia produtiva de jumentos, o que submeteria a espécie a maus-tratos e ao risco de extinção.
Dados apresentados no 3.º Workshop Jumentos do Brasil, realizado em Maceió, em junho, apontam que a população asinina no país foi reduzida em 94% em duas décadas, de 1,3 milhão em 1996 para 78 mil em 2025.
O fim da espécie no Nordeste do Brasil ainda teria como consequência a perda do patrimônio genético da população e uma ameaça a uma figura presente na tradição cultural nordestina, o que contrariaria o artigo 216 da Constituição.
Outros direitos fundamentais garantidos constitucionalmente e que estariam sendo infringidos com a liberação do abate de jumentos seriam a preservação do meio ambiente, da diversidade genética e da proteção da fauna e da flora, conforme estabelecido no artigo 225 e seus incisos.
“Cabe destacar, ainda, o risco sanitário. A falta de rastreabilidade dos jumentos gera riscos sanitários, especialmente em relação ao mormo, uma zoonose grave, com alta taxa de letalidade”, diz.
“Somado a isso, tal atividade impacta os níveis da biossegurança e da bioeconomia do país, bem como está relacionada ao problema do tráfico de animais silvestres, segundo estudos realizados na Inglaterra”, alega.
Para zootecnista, queda na população de jumentos não tem a ver com abates
Quem defende a atividade argumenta que a decisão do TRF1 deve atrair novos investidores, favorecendo a formação de uma cadeia produtiva, além de gerar ganhos econômicos para o país e para a região.
O zootecnista e produtor pecuário Alex Bastos, que trabalha com jumentos em Salvador, afirma que o abate de animais tem contribuído significativamente para reduzir riscos de acidentes nas estradas baianas.
“Como nunca se estabeleceu uma pecuária dos jumentos e seu uso foi perdendo utilidade nas atividades de transporte, muitos animais são abandonados nas estradas e em campos”, diz.
Segundo ele, as informações disponibilizadas sobre o número de jumentos no semiárido são fragmentadas e baseadas, em grande parte, em percepções regionais, não em dados consolidados, o que inviabiliza a comprovação de que o abate atual tenha sido responsável pela alegada redução populacional.
“O Brasil nunca teve tradição no consumo dessa proteína. Em outras palavras, os dados indicam que a redução da população de jumentos no país não pode ser atribuída às atividades dos frigoríficos”, contesta o zootecnista.
De acordo com Bastos, outros levantamentos sugerem que o declínio se acentuou justamente no período em que não havia atividades frigoríficas em funcionamento pleno.
Para ele, a nova jurisprudência dá ao Brasil a possibilidade de sair do abandono não intencional e para a revalorização produtiva dos asininos, da mesma forma que ocorreu no passado com os bovinos.
“É fundamental que o debate sobre os jumentos no Nordeste seja conduzido com responsabilidade técnica e transparência, evitando conclusões precipitadas ou narrativas baseadas apenas em emoção ou ideologia”, diz o zootecnista.
“A questão vai muito além de ‘acabar ou não com o abate’. Trata-se de compreender como transformar uma situação de abandono em uma política pública de manejo sustentável, com foco no bem-estar animal, no controle populacional e sanitário, na segurança viária e no desenvolvimento regional”, afirma.
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