Para o cofundador do MNU (Movimento Negro Unificado) José Adão de Oliveira, 70, o Brasil vive, desde a distribuição de capitanias hereditárias em tempos coloniais, uma história marcada pela apropriação de poder por uma minoria.
Segundo ele, essa minoria cria empecilhos para que a população negra alcance espaços de decisão ao tentar minar as políticas de cotas vigentes no país, seja a partir da anistia aos partidos que não cumprem a legislação seja por meio da fraude na identificação racial.
Cotas para negros em espaços de poder são uma demanda de décadas da população negra, incluindo o MNU, surgido em 1978 para lutar contra a discriminação racial em plena ditadura militar (1964-1985).
Atualmente conselheiro do movimento, José Adão fala sobre a política racial do terceiro governo Lula (PT), que ele considera ser prejudicada pela necessidade de negociação com grupos conservadores, defende bancas de heteroidentificação para combater fraudes de candidatos autodeclarados negros nas eleições e traça considerações sobre a criação de um partido negro no Brasil.
Como avalia a inserção de negros na política?
Muita gente que era lida como branca e nunc a se autodeclarou negra, de repente, começou a se declarar. Houve um crescimento exponencial de autodeclaração visando se apropriar da verba pública. Parlamentares de esquerda votaram com a direita pela não aplicação da lei [de cotas nas eleições]. Isso impede que as instâncias de poder expressem democraticamente o percentual de negros e mulheres na população.
Essa proporcionalidade tinha que estar em todas as cadeiras do Parlamento, para cumprir o conceito de democracia. Nem democracia representativa nós temos. Temos uma apropriação continuada do poder pelas famílias das capitanias hereditárias da colonização, que permanece inalterada até hoje. Melhorou um pouquinho, mas, em essência, são essas as estruturas que continuam usufruindo do trabalho suado da maioria da população.
Como seria possível resolver a autodeclaração potencialmente incorreta?
A banca de heteroidentificação é parte da evolução da política pública. Ela tem que estar em todos os processos. Também é necessário ter uma formação pública e ética dos servidores em todas as instâncias.
A falta de ética está no princípio. Se a pessoa não tem ética para ocupar aquele espaço, ela não deve ocupá-lo, para o bem-estar da sociedade.
Considerando esses aspectos, qual é o saldo da política de cotas raciais nas eleições?
A política em si é exitosa, porque conseguiu ser implantada. Agora, dado o atraso em que ainda vivemos —estamos na semirrepública, no semicolonialismo—, há ainda muita rejeição. Essa rejeição não vai desqualificar a política [de cotas]. São as pessoas que não estão à altura da política, que estão atrasadas no tempo.
Existe algum nome forte de candidato negro para concorrer à Presidência em 2026? Como avalia o cenário?
Não existe. Essa não existência é fruto dessa política que deu razão ao surgimento do MNU. É preciso haver um processo de construção da cidadania em relação a educação, saúde, moradia, participação social e respeito. Tudo isso faz um conjunto formativo de cidadania, participação social e reconhecimento de pessoas que geram confiança para a delegação de tarefas.
Se as pessoas não conseguem chegar a cargos de gerência, não há referência para a pessoa de baixo que está olhando para cima. Se não há referência, não tem como delegar. Como votar no que não existe?
É por isso que não temos uma candidatura forte para governador, prefeito ou presidente. Eu poderia citar a Benedita da Silva [deputada federal pelo PT do Rio de Janeiro], que é o nome mais famoso que temos, mas ela não chega a ter uma densidade eleitoral de, no mínimo, 20%. [Tem a ver com] esse histórico de invisibilidade e de crimes continuados contra a população negra.
Qual tem sido o saldo do governo Lula 3 em relação a políticas públicas para a população negra?
Poderia ser bem melhor, mas é a expressão dessa articulação política que foi feita, na qual se tem que negociar com a maioria conservadora. Pautas progressistas não avançam muito, mas tivemos avanços na política de saúde para a população negra.
No MEC [Ministério da Educação], os avanços estão no investimento no ensino médio e no Pé de Meia [programa do governo federal que dá incentivo financeiro a estudantes]. Há também uma política de apoio a cursinhos populares, o que é muito importante, porque o pessoal dos cursinhos e da EJA [Educação de Jovens e Adultos] são cidadãos que não tiveram o seu direito à educação respeitado desde pequenos.
E no Judiciário, como avalia a absorção de negros neste Poder e a pressão de movimentos sociais por uma mulher negra no STF (Supremo Tribunal Federal)?
São a continuidade e o aperfeiçoamento da política de cotas que vão propiciar mais acesso ao Judiciário. Sobre a pressão por uma mulher negra no STF, é totalmente justa e necessária. O Supremo sem a Cármen Lúcia, com ela se aposentando, vai ficar como? Um Judiciário de homens brancos.
É mais que necessário ter mais pessoas negras e mulheres participando. É um fator de justiça, na verdade. Sem muitas delongas, é simplesmente fazer justiça. Se o Judiciário não faz justiça consigo mesmo, como é que pode dar exemplo para a sociedade?
No ano de sua fundação, em 1978, o MNU lançou texto no qual tratou da falta de representação da população negra “nos meios de decisão, o que consequentemente nos impede de levar as nossas reivindicações às mais altas esferas políticas”. No texto, o movimento se diz consciente de estar “numa fase embrionária de organização”, daí a impossibilidade de ter lançado, na época, candidatos próprios. Desde então, pensaram em fundar um partido?
Não posso falar pela totalidade do MNU, mas nunca debatemos em nenhum congresso nosso a possibilidade de o MNU ser um partido. O que nós colocamos, desde 1993, é a construção de um projeto político a partir da perspectiva da população negra, do povo negro para o Brasil, para o conjunto, e não de a gente ser um partido político.
Na nossa história, não lançamos candidatos próprios porque não somos partido político. Mas pessoas filiadas ao MNU foram candidatas, dentre elas o Abdias Nascimento. Atualmente temos várias candidatas, como Simone Nascimento (PSOL), codeputada estadual em São Paulo e coordenadora do MNU.
Como o MNU avalia a possibilidade da criação de um partido negro no Brasil? Existem iniciativas nesse sentido.
É um direito. Mas eu acho que o MNU não se constituiria nessa alternativa. O MNU tem uma carta de princípio, tem um programa em execução. A gente quer ver as pessoas negras ocupando os vários espaços que estão aí.
O Republicanos, do governador Tarcísio [de São Paulo], por exemplo. Quantos secretários estaduais são negros e negras no governo Tarcísio? No partido do Tarcísio? E nos demais partidos?
A evolução seria ter a ocupação equitativa em todos os partidos, cumprindo a lei existente de cotas. Criar um partido negro é um direito, mas não vejo como a solução. É uma das soluções, mas não a mais adequada.
O MNU se define como apartidário, mas alinhado à esquerda. Como o movimento encara negros de direita?
É igual o branco de direita. Não tem distinção. A questão de direita e da esquerda surgiu na Revolução Francesa. De quando é Zumbi dos Palmares? De quando é Ganga Zumba? Muito, mas muito antes disso. Quando Pero Vaz de Caminha veio para cá e classificou os indígenas como pardos, essa divisão já veio. A nossa questão [racial] vem antes [de esquerda e direita].
RAIO-X | José Adão de Oliveira, 70
Cofundador e integrante do Conselho dos Griots do MNU (Movimento Negro Unificado). É educador social, escritor, coautor do livro “Movimento Negro Unificado: a resistência nas ruas” (Edições Sesc São Paulo e Fundação Perseu Abramo, 2019) e coordenador do “I Livro GRIOT do MNU: memórias de vida e luta da Idosidade Negra” (Sabedoria Griot, 2024).





