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Jovem morto por leoa expõe falhas sobre esquizofrenia – 01/12/2025 – Equilíbrio e Saúde

A morte de Gerson de Melo Machado, 19, conhecido como Vaqueirinho, após invadir a jaula de uma leoa no Parque Zoobotânico Arruda Câmara, em João Pessoa, neste domingo (30), reacendeu um debate antigo e nunca resolvido no país: o abandono das pessoas com transtornos mentais graves e a ausência de políticas públicas de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento adequado.

Gerson tinha diagnóstico de esquizofrenia. Era um jovem pobre, criado em extrema vulnerabilidade, sem apoio familiar consistente ao longo da infância. “Foi uma criança que sofreu todo tipo de violação de direitos”, disse nas redes sociais a conselheira tutelar Verônica Oliveira, que o acompanhou durante oito anos, dos 10 aos 18 anos.

“Filho de uma mãe com esquizofrenia, com avós também esquizofrênicos, vivia numa pobreza extrema”, relatou. Segundo ela, o conselho solicitou inúmeras vezes laudos psiquiátricos para que o jovem tivesse acompanhamento adequado.

“Mas o Estado dizia que ele só tinha um problema comportamental. Gerson precisava de tratamento, que não foi oferecido. Gerson passou por todos os acolhimentos institucionais da cidade, mas não teve tratamento.” Segundo Verônica, o rapaz alimentava o sonho de ir à África para “domar leões”.

O episódio, trágico e simbólico, não surpreende quem atua na área.

“Essas histórias não são novas. A gente vive tragédias diárias que poderiam ser evitadas”, diz o psiquiatra Rodrigo Bressan, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e pesquisador especializado em esquizofrenia.

Para Bressan, o caso de Gerson expõe a ausência de uma política pública crucial e já consolidada em diversos países: a intervenção imediata no primeiro episódio psicótico.

“O que falta? Falta identificação precoce, falta tratamento precoce especializado. No mundo inteiro que faz as coisas direito há serviço sofisticado e custo efetivo para o primeiro episódio. O Brasil não faz isso”, afirma.

Ele explica que o modelo brasileiro ainda está ancorado na lógica de cuidar do transtorno mental grave e cronificado —uma herança da era manicomial. “O Caps [Centro de Atenção Psicossocial] foi desenhado para quem saiu do manicômio. Não foi feito para prevenção ou tratamento precoce.”

Segundo Bressan, como consequência, grande parte dos jovens com início de psicose não recebe cuidado adequado, abandona a escola, se isola, piora. Muitas vez, só entra no sistema de saúde depois de uma crise grave, já mediada pela polícia ou por serviços de emergência.

“É aí que a duração da psicose não tratada se estende, e quanto maior o tempo sem tratamento, mais grave é a evolução.”

Nos países que adotam programas de intervenção precoce, a abordagem é ampla: atende o paciente e a família desde o início —justamente o período de maior confusão, culpa e preconceito.

“É quando a família está perdida, sem saber se é espiritual, se é culpa de alguém, se o comportamento é só rebeldia. Isso retarda o tratamento”, diz o psiquiatra.

Segundo Bressan, a adesão ao tratamento em serviços especializados para primeiro episódio de esquizofrenia é muito maior. “A perda é de 20% a 30%. Nos não especializados, chega a 70% a 90%.”

Ele cita um exemplo pessoal. “Tenho pacientes que hoje são médicos atuando normalmente. O tratamento funciona. Dá trabalho, tem efeitos colaterais, mas funciona. Tratar cedo e direito muda completamente a trajetória”, diz o psiquiatra.

O estigma, porém, segue sendo um obstáculo gigantesco. “A taxa de violência entre pessoas com esquizofrenia tratadas é menor que a da população geral. Mas o preconceito cria a profecia autorrealizável: o médico e a família acham que não tem jeito, tratam de qualquer forma, o paciente piora e confirma o estigma.”

Ele lembra que mesmo famílias bem estruturadas enfrentam desafios. “Às vezes a família vira conivente com o sintoma. É difícil negociar adesão a longo prazo.”

Para o psiquiatra, o ponto central é que mortes como a do jovem de João Pessoa não podem reforçar narrativas estigmatizantes. “As pessoas morrem de câncer mesmo com rastreamento. Uma tragédia isolada não invalida políticas de prevenção. A gente não pode voltar ao discurso de que ‘é tudo maluco’.”

O caminho para evitar novas tragédias, diz Bressan, passa por três pilares: diagnóstico precoce, tratamento especializado e regular e educação da sociedade para combater o estigma.

“O conhecimento é a maior arma contra o preconceito. A imprensa tem um papel essencial: não usar tragédias para sensacionalismo, mas para educar a população.”

Ele defende que decisões em saúde mental sejam guiadas por evidências científicas. “Precisamos de serviços baseados em ciência, não em política e ideologia.”

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