Neste ano, a Colômbia se tornou o primeiro país da América Latina a proibir, na Justiça, a oferta de planos de internet com dados ilimitados para plataformas como o WhatsApp, o Facebook ou o app de mapas Waze. Nesses pacotes, o usuário precisa pagar para acessar outros sites e aplicativos concorrentes.
A saga judicial começou em 11 de novembro de 2021, quando a advogada Ana Bejarano, hoje com 37 anos, protocolou uma ação contestando a constitucionalidade dessa prática, chamada de zero rating. A demanda provocou oposição de todos os espectros da classe política local.
O argumento central da advogada é: não há nada grátis. “Primeiro as pessoas pagam por um plano de celular e depois pagam oferecendo seus dados, permitindo que a Meta produza e venda perfis com fins publicitários e comerciais”, disse. Ela, que vive em Bogotá, conversou com a Folha por videoconferência.
De acordo com Ana, os donos desses planos, normalmente pessoas mais pobres, acabam restritos a determinadas plataformas. Quem tem acesso ilimitado restrito ao Instagram, por exemplo, não poderia ver um vídeo no TikTok. “As pessoas acham que estão acessando a internet, mas estão acessando só a Meta.”
O governo à esquerda de Gustavo Petro, a oposição de direita e o Ministério Público defenderam o zero rating como um facilitador do acesso à internet.
No fim, a Suprema Corte colombiana julgou que restringir os usuários a rincões da internet fere os direitos fundamentais de liberdade de expressão e acesso à informação, acatando a tese de El Veinte, a entidade digirida por Ana. A decisão aguarda publicação da sentença para ter efeito.
Na Colômbia, o marco civil da internet inclui uma exceção à neutralidade da rede, permitindo o zero rating. A gestão do ex-presidente Juan Manuel Santos fez esse adendo em 2016, a pedido do Facebook. O livro Careless People (sem tradução no Brasil), da ex-embaixadora do Facebook Sarah Wynn-Williams, descreve a negociação. Foi essa exceção que a Corte Constitucional colombiana considerou incompatível com as garantias fundamentais.
Parte dos colombianos repudiou a decisão e se manifestou no X (ex-Twitter), alçando Ana ao posto de pessoa mais citada na plataforma no país. Foram 286.422 publicações entre 30 de maio e 4 de junho, quando a repercussão do assunto ganhou escala. Os dados foram levantados pela agência de checagem Cazadores de Fake News.
Mais de 70% dos posts eram críticos, muitos deles com teorias da conspiração, expressões misóginas e memes. Os autores escreveram sobre “ódio à Ana” e a descreveram como inimiga dos direitos da população da Colômbia e do presidente Gustavo Petro.
“O pior inimigo de um pobre é um burguês de esquerda”, escreveu uma conta no X sobre o assunto. Outro usuário questionou as doações que El Veinte recebeu da Alphabet, conglomerado dono do Google e do Waze. O pré-candidato a presidente da Colômbia e ex-prefeito de Medellín Gustavo Quinteiro, um político alinhado ao presidente Petro, disse que a entidade era motivada por políticos da oposição que querem o controle das redes sociais.
Diante da repercussão negativa, a equipe de comunicação de El Veinte decidiu excluir um artigo sobre a vitória na Corte Constitucional no dia 1º de junho. A decisão editorial foi vista como chancela às críticas e se tornou mais munição contra a entidade.
Neste mês, ainda circulavam publicações negativas sobre a advogada. Uma a questionava sobre os interesses de seu pai, o ex-ministro da Corte Constitucional Ramiro Bejarano. Outra ligava a Luminate, uma das organizações que financia El Veinte, a uma suposta campanha pela censura.
Toda a campanha ganhou tração junto com a tese de que a parcela mais pobre da população perderia conexão.
Ana diz que não há evidências de que a proibição do zero rating impeça o acesso à internet.
Além da advogada, seu sócio Emiliano Sanchez foi autor da peça. Ele, no entanto, não foi alvo das publicações.
Ana diz que isso tem a ver com um incentivo perverso das redes. “A misoginia digital é rentável porque o algoritmo responde muito bem a esse tipo de mensagem.”
Para a advogada, outro dos motivos da confusão é a demora para se publicar o texto final da sentença. Até agora, houve apenas um comunicado sobre a inconstitucionalidade do trecho da lei que abre espaço para oferta de planos de acordo com o perfil de consumo do usuário. O governo colombiano tampouco se pronunciou oficialmente após o veredito.
“Eu acho que parte do que ocorreu, dessa reação tão selvagem, é porque não houve sentença”, disse. “Se você tem uma decisão clara, pode explicá-la, pode defendê-la, mas todo mundo acabou especulando sobre o que a Corte decidiu.”
No Brasil, mesmo sem haver guarida em lei específica, as operadoras podem oferecer planos com zero rating devido a entendimentos da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e do órgão concorrencial Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). No Chile, por outro lado, o regulador das telecomunicações, Subtel, proibiu a prática.
Para Ana, um novo desafio surge agora com a recente parceria entre OpenAI e a Claro para oferecer uma versão premium do ChatGPT como bônus em planos pós-pagos. “É um problema de direitos humanos”, diz. “Os riscos enfrentados nas redes sociais tradicionais são muito menores do que os riscos do uso da inteligência artificial.”
“Já vimos muitos casos de como isso pode dar errado: pessoas que a utilizam quase para substituir todas as suas tarefas, que a usam em âmbitos emocionais e psicoafetivos, conversas que incentivam o suicídio ou que promovem violência.”





