quinta-feira, novembro 27, 2025

Como o STF relacionou a vigília ao risco de um novo 8 de janeiro

A conversão da prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em prisão preventiva trouxe à tona uma nova peça da narrativa jurídica construída desde os atos de 8 de janeiro de 2023. Entre os elementos destacados para justificar a determinação feita pelo ministro Alexandre de Moraes e confirmada pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), uma vigília de oração, convocada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), foi citada como fator de “risco de repetição do 8 de janeiro”. Moraes também apontou risco de fuga e tumulto.

Posteriormente, na terça-feira (25), Moraes já determinou a execução da pena definitiva de 27 anos e 3 meses. A decisão do ministro foi confirmada pela Primeira Turma por unanimidade.

Na decisão sobre a prisão preventiva, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que a convocação da vigília incitava “adeptos do ex-presidente” a se deslocarem até as proximidades da residência do ex-presidente. Ele também argumentou que esse tipo de mobilização remete a um “modus operandi” da suposta “organização criminosa” liderada por Bolsonaro, semelhante ao cenário dos acampamentos antes dos atos de 8 de janeiro, quando manifestantes invadiram e depredaram prédios públicos.

“O Senador da República faz uso do mesmo modus operandi, empregado pela organização criminosa que tentou um golpe de Estado no ano de 2022, utilizando a metodologia da milícia digital para disseminar por múltiplos canais mensagens de ataque e ódio contra as instituições”, escreveu o ministro Alexandre de Moraes. 

Ao determinar a prisão preventiva, foram apontados ainda outros dois pilares: a violação da tornozeleira eletrônica e o suposto risco de obstrução da fiscalização policial. O ministro Alexandre de Moraes registrou, por exemplo, que por volta de 0h08 na madrugada, a tornozeleira eletrônica usada por Bolsonaro sinalizou uma violação. Para Moraes, a vigília reforçaria a hipótese de criação de um “ambiente propício para sua fuga”. 

De acordo com analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a vinculação entre um ato religioso e a possibilidade de um novo 8 de janeiro gerou questionamentos sobre o limite entre prevenção e excessos. Para o advogado criminalista Anderson Flexa, a decisão mostra um descompasso entre a gravidade dos fatos apontados e o rigor das medidas aplicadas. “O histórico recente vem demonstrando que a Corte vem recorrendo aos eventos de 8 de janeiro de 2023 como parâmetro de gravidade institucional, a justificar cautelares mais amplas”, afirmou Flexa.

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Voto de Dino reforçou tese que relacionou vigília a atos de 8 de janeiro 

Nos votos que embasaram a manutenção da prisão preventiva de Bolsonaro, tanto Moraes quanto o ministro Flávio Dino reforçaram a ideia de periculosidade e risco de reiteração, ainda que não houvesse indícios concretos de planejamento de fuga. 

Dino chegou a alegar que mobilizações de apoiadores do ex-presidente poderiam resultar em “condutas semelhantes às de 8 de janeiro”, mesmo que a convocação se referisse explicitamente a um ato de oração. 

No julgamento da Primeira Turma do STF, Dino acompanhou Moraes, reforçando sua argumentação. “A experiência recente demonstra que grupos mobilizados em torno do condenado, frequentemente atuando de forma descontrolada, podem repetir condutas similares às ocorridas em 8 de janeiro. Há risco concreto, portanto, de que tais indivíduos tentem adentrar o condomínio, violando patrimônio privado, ou se desloquem a prédios públicos situados nas proximidades, com possibilidade de reiterar atos ilícitos já verificados em outras ocasiões, inclusive com uso de bombas, armas, etc”, escreveu Dino. 

Segundo Dino, mesmo que a vigília fosse apresentada como religiosa, o contexto evidenciava retóricas de confronto e uma estratégia política. “Se os propósitos fossem apenas religiosos, a análise poderia ser diversa, mas lamentavelmente a realidade tem demonstrado outra configuração, com retóricas de “guerra”, ódios, cenas de confrontos físicos, etc.”, afirmou Dino em seu voto.

Ele ainda definiu sua posição com base na garantia da ordem pública. Para Dino, a mobilização de apoiadores em torno de Bolsonaro representa risco real de reiteração delitiva. 

Uma vigília pode ser tratada como ameaça à ordem pública? 

A inclusão do ato religioso no rol de fatores que justificaram a prisão preventiva é um dos pontos mais controversos da decisão.  

Segundo o advogado criminalista Bruno Gimenes Di Lascio, o STF se apoiou essencialmente na ideia de que a vigília poderia servir como cobertura para uma eventual fuga. “O fundamento foi o de que a vigília convocada por terceiro (Flávio Bolsonaro) tinha potencial de turbar a ordem ao redor do condomínio onde vive Bolsonaro, prejudicando a fiscalização da prisão domiciliar”, explicou.

Ele lembra que Moraes mencionou em seu voto o caso do corréu Alexandre Ramagem, que deixou o país rumo aos Estados Unidos, como elemento agravante.

Mesmo assim, Di Lascio observa uma lacuna entre a narrativa judicial e os fatos apresentados no processo. “Não há elementos de que tal evasão ocorreria, nem elementos de que a vigília visava acobertar a evasão. Mas assim foi decidido”, afirma. 

Para Di Lascio, a interpretação do STF cria um precedente preocupante, pois se trata de uma ampliação inadequada do conceito de ameaça à ordem pública. “A reunião pacífica de pessoas é direito fundamental previsto na Constituição. Pelo que consta, a vigília se daria nas proximidades do condomínio, não na frente da casa de Bolsonaro. Assim, Bolsonaro nem sequer teria acesso à vigília, e a reunião não atrapalharia a coletividade, sendo então completamente lícita”, diz. 

Ele alerta que, ao considerar mobilizações religiosas ou pacíficas como ameaça por antecipação, o STF expande de forma inédita o conceito de desordem pública. “Se toda mobilização social for previamente tomada como desordem pública, então o STF terá abolido um direito constitucional plenamente vigente desde 1988”, completou Di Lascio. 

Embora admita que aglomerações possam gerar tumultos, a advogada constitucionalista Vera Chemin enfatiza que isso ocorre em qualquer reunião pública e que cabe à polícia exercer fiscalização discreta — não converter um ato religioso em indício de reiteração delitiva. “A finalidade da vigília evidencia que o movimento seria pacífico e se insere claramente no direito fundamental ao exercício da liberdade religiosa”, acrescenta a advogada. 

Ministros já usaram atos de 8 de janeiro como justificativa para outras decisões 

A associação entre a vigília e o risco de um “novo 8 de janeiro” não é um movimento isolado. Os ataques às sedes dos Três Poderes já foram utilizados pelo Supremo como parâmetro para restringir manifestações políticas. 

O advogado criminalista Bruno Gimenes Di Lascio cita um episódio recente. “Em julho, o ministro Alexandre de Moraes determinou a retirada de parlamentares do Partido Liberal que estavam acampados em frente ao STF, como forma de protesto contra as restrições impostas ao ex-presidente. A decisão proibiu a realização de qualquer tipo de acampamento no raio de um quilômetro da Praça dos Três Poderes, dos quartéis das Forças Armadas e da Esplanada dos Ministérios.” 

Segundo ele, na prática, a medida restringiu o acesso de determinados grupos ao espaço público. “Esses locais, embora públicos, passaram a estar imunes a qualquer mobilização popular — pelo menos quanto ao espectro ideológico indesejável”, afirma Di Lascio. 

A advogada constitucionalista Vera Chemin também aponta que os parlamentares foram alvo de restrições com base em alegações hipotéticas de risco futuro, sob o argumento de que “poderia ocorrer algo” similar aos ataques de 2023, tal qual as suposições feitas em relação à vigília convocada por Flávio Bolsonaro.  

Advogada cita antecipação de juízo

A decisão do STF repercutiu nos meios políticos, entre apoiadores do ex-presidente. A defesa de Bolsonaro, em nota, afirmou que vê com “profunda perplexidade” a prisão baseada em uma vigília religiosa e argumenta que a Constituição garante liberdade de reunião e expressão religiosa.  

O líder do PL, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), avaliou que a prisão de Bolsonaro era previsível, mas que causou espanto. “Mais um capítulo triste deste momento do nosso país, nós pudéssemos ver uma pessoa ter uma prisão preventiva decretada por uma convocação de uma vigília de oração”, afirmou o parlamentar.

O senador Jorge Seif (PL-SC) também mencionou o fato. “O que está acontecendo não é política. É uma perseguição implacável que chegou ao fundo do poço: tentar criminalizar a oração pelo nosso Presidente Bolsonaro. Eles usaram a intolerância religiosa para nos silenciar, rotulando um ato de fé como “organização criminosa”. O objetivo é claro: testar o limite da sua liberdade e da nossa Constituição”, escreveu o senador em publicação feita nas redes sociais.

Apesar da reação dos aliados, a advogada constitucionalista Vera Chemin esclarece que Moraes não proibiu a vigília religiosa. “O relator apenas acenou para a possibilidade de que a vigília fosse usada como meio de fuga. Fuga não é crime, mas facilitar fuga é, e é nisso que Moraes mira: enquadrar Flávio Bolsonaro por suposta tentativa de facilitar a evasão do pai”, explica. 

A advogada ressalta que o problema está na antecipação de juízo sobre fatos que não ocorreram. “Transformar um convite para vigília em instrumento de facilitação de fuga exige indícios concretos de materialidade e autoria — o que não está demonstrado.” 

Segundo ela, aliados de Bolsonaro interpretaram a decisão como “criminalização da liberdade religiosa”, mas essa leitura — afirma — não corresponde ao texto da decisão. “Moraes está mirando Flávio Bolsonaro, não a vigília em si.” 

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