quinta-feira, novembro 27, 2025

Entregador de app na China revela como é o trabalho contando cada minuto – 09/11/2025 – Mercado

Nenhum país do mundo é tão obcecado por compras online quanto a China. Em 2024, consumidores chineses gastaram 15,5 trilhões de yuans (R$ 11,6 trilhões) em produtos pela internet —mais do que em qualquer outro lugar.

O ecommerce chinês é onipresente, rápido e conveniente. Mas essa conveniência tem um custo alto, como relata Hu Anyan em seu livro “Faço entregas em Pequim: Memórias de um trabalhador”, um best-seller no país recentemente traduzido para o inglês.

Para atingir sua meta de salário mensal de 7.000 yuans (R$ 5.200) —o equivalente a 26 dias de trabalho— Hu precisava faturar 270 yuans (R$ 200) por turno de 11 horas. Organizar as encomendas e conduzir seu triciclo pelo território de entregas consumia duas horas.

Ele recebia cerca de 2 yuans por pacote (R$ 1,5), o que significava fazer uma entrega a cada quatro minutos, durante nove horas seguidas. Passou a enxergar cada minuto como meio yuan em potencial. Ir ao banheiro custava 1 yuan (R$ 0,75); comprar e comer o almoço, 25 yuans (R$ 19). Aprendeu a beber menos água e a pular refeições.

Também aprendeu a planejar suas rotas com precisão quase militar —um plano facilmente arruinado por clientes lentos. Quando uma mulher que havia preenchido o endereço errado pediu que ele fizesse um desvio de 30 minutos por uma área desconhecida, pensou: “Nada disso deveria ser tão difícil de imaginar, se ao menos ela se colocasse no meu lugar.”

De bom grado ou não, muitos trabalhadores chineses já o fazem. Cerca de 40% da força de trabalho urbana da China depende de algum tipo de ocupação flexível, incluindo um número estimado de 84 milhões de pessoas que atuam em plataformas digitais, como aplicativos de transporte e entrega.

No ano passado, os entregadores chineses despacharam 175 bilhões de pacotes —uma média impressionante de 124 por habitante.

Com empresas reduzindo equipes e salários, muitos recorreram ao trabalho por aplicativo. Para alguns, a queda foi vertiginosa: este repórter, ao escolher a opção mais barata de transporte, já foi conduzido por um ex-gerente de marketing demitido dirigindo um Tesla e por um vendedor de roupas de luxo em dificuldades ao volante de um Mercedes.

Essa é uma das razões pelas quais o livro de Hu ressoou tanto na China. Desde seu lançamento em 2023, já vendeu quase 2 milhões de exemplares e rendeu ao autor o prêmio de “Escritor do Ano” do Douban, a principal plataforma de resenhas do país.

Embora alguns críticos o tenham desdenhado como liushuizhang —um “relato corrido”, mera narração do cotidiano— até a imprensa estatal elogiou suas descrições “sem verniz” da “pressa dos algoritmos, das artimanhas e gentilezas dos clientes, e do esgotamento físico e mental”.

A prosa direta e o olhar atento de Hu capturam o desgaste brutal do trabalho mal pago e o custo humano que ele impõe. Em antigos empregos noturnos em depósitos logísticos no sul da China, ele voltava para seu quarto apertado e combatia a insônia com chocolate amargo e baijiu barato —o destilado nacional— antes de retornar ao turno poucas horas depois.

Testemunhou o desmoronar do relacionamento entre dois colegas, um jovem viciado em jogos e sua namorada grávida. Ele e os outros pouco fizeram para ajudar. “Ninguém tinha nada sobrando para oferecer”, escreve. “Um ambiente de trabalho assim espreme toda a vida de uma pessoa.”

Mesmo assim, Hu mostra empatia pelos personagens que conheceu, como o operador de guindaste apaixonado por compras online. Como o cliente ficava frequentemente suspenso no alto, eram necessárias várias idas para conseguir sua assinatura.

Só nos últimos dias como entregador Hu experimentou “o luxo de desperdiçar tempo, como se fosse uma forma de vingança. Eu havia me sentido esmagado pela necessidade constante de explorar cada segundo; meu tempo era tão tenso quanto meus nervos.”

Hoje, ele anda mais leve. Em um shopping perto de sua casa, na cidade de Chengdu, no sudoeste da China, leva este repórter a um de seus refúgios preferidos: um lounge em frente a um cinema. É surpreendentemente silencioso, com wi-fi e ar-condicionado gratuitos —ideal para escrever— e um bufê próximo que reduz o preço após as 13h30.

Embora já não precise contar cada yuan, Hu tenta esticar seus ganhos para ter mais tempo de escrever. Alguns trabalhadores passam o dia apertando parafusos em iPhones, produzindo itens idênticos sem deixar traço pessoal.

Escrever, ele diz, é o oposto: permite expressar sua individualidade e retratar a dos outros. Ele passou de shengchan (produzir) a shenghuo (viver).

Embora tenha nascido em 1979, Hu encontrou leitores entre os mais jovens. Ele diz que a curiosidade inicial sobre a vida dos entregadores deu lugar a perguntas mais profundas de jovens chineses que repensam o sentido do trabalho diante de um futuro incerto.

Eles encontram consolo em seus fracassos enquanto tentam navegar uma economia em desaceleração. A geração de Hu via o trabalho como caminho para a riqueza; a anterior, como esforço coletivo para construir uma nova China.

Os novos graduados de hoje entram em uma sociedade relativamente próspera e valorizam mais o tempo livre. Muitos têm pais com poupança e imóveis. Quase 18% dos chineses de 16 a 24 anos (excluindo estudantes) estavam desempregados em setembro —mas nem todos se preocupam. Muitos preferem tangping, ou “deitar e relaxar”, levando vidas com menos pressão e ambição material.

Hu lembra que, em uma padaria onde trabalhou, os padeiros escondiam suas técnicas por medo de que “ensinar o discípulo deixasse o mestre com fome”. Essa mentalidade, diz ele, vem da escassez —de uma sociedade onde recursos limitados eram divididos entre uma população imensa.

A China moderna é diferente, e talvez ofereça às próximas gerações a chance de redefinir o que significa trabalhar.

Texto de The Economist, traduzido por Gustavo Soares, publicado sob licença. O artigo original, em inglês, pode ser encontrado em www.economist.com

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