O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai acelerar o pagamento de dívidas imobiliárias antigas, em uma medida que vai favorecer a estatal federal Emgea (Empresa Gestora de Ativos) e abrir caminho para o repasse de dividendos extras à União em 2026, ano eleitoral.
Neste ano, a equipe econômica já recorreu à companhia para resgatar R$ 2,6 bilhões em dividendos e reforçar o caixa. A decisão evitou um congelamento ainda maior de despesas do Orçamento de 2025 diante da frustração de receitas e da necessidade de compensar o rombo nas contas dos Correios, que passa por grave crise financeira.
Na segunda-feira (24), o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, sinalizou em entrevista que o governo pode recorrer novamente às estatais para ampliar suas receitas no ano que vem.
A Emgea foi criada em 2001 para administrar parte da carteira de crédito habitacional da Caixa que estava presa a esses contratos imobiliários e tinha inadimplência elevada. Procurada, a companhia confirmou à Folha que, com a quitação mais rápida das dívidas, “existe a possibilidade de aumento do lucro da empresa e, consequentemente, dos dividendos a serem pagos”.
Técnicos do governo ressaltam que a aceleração faz parte de uma estratégia mais ampla para evitar processos judiciais e até mesmo o recálculo do débito, já que o acordo atual fixa um prazo até o fim de 2026 para resolver o passivo.
Hoje, ainda restam pelo menos R$ 40 bilhões a serem pagos pelo Tesouro. Os repasses configuram despesa financeira e não esbarram nas regras fiscais, embora contribuam para o aumento da dívida pública.
Outros credores além da Emgea também serão contemplados, como Caixa Econômica Federal, FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e bancos privados detentores desses créditos.
A aceleração do pagamento das dívidas do chamado FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salariais) foi incluída no projeto de lei que tratou das medidas de ajuste mais recentes defendidas pela equipe do ministro Fernando Haddad (Fazenda). O texto foi sancionado por Lula na semana passada.
A principal mudança é eliminar a análise prévia feita pela CGU (Controladoria-Geral da União) sobre a conformidade dos pagamentos. Para técnicos da área econômica e da Caixa, essa é uma etapa que provoca demora nas avaliações e pode, com o fim do prazo, gerar mais custos para a União.
Dentro da CGU, porém, a mudança repercutiu mal e é vista como uma porta aberta para desembolsos indevidos, favorecendo os credores do fundo.
Segundo o Tesouro Nacional, “as alterações recaem sobre o rito de instrução dos processos” de pagamento e “em princípio” não devem gerar custo adicional para a União. Trata-se de uma iniciativa distinta da que foi aprovada recentemente pela Câmara dos Deputados, que teria impacto de R$ 38 bilhões e foi classificada pelo governo como uma ofensa ao princípio da gestão fiscal responsável.
Procuradas, CGU e Caixa não se manifestaram.
O FCVS foi criado na década de 1960 para garantir o pagamento integral dos contratos do antigo SFH (Sistema Financeiro de Habitação) num contexto em que a inflação elevada impulsionava o saldo devedor dos financiamentos. Como as contribuições dos mutuários e das instituições financeiras se mostraram insuficientes para cobrir as obrigações, o Tesouro Nacional assumiu a dívida e emite títulos públicos para honrar os pagamentos.
Dos R$ 40 bilhões a serem pagos pelo fundo, R$ 9 bilhões já estão homologados e auditados pela Caixa, administradora do FCVS. Outros R$ 31 bilhões estão homologados, mas ainda em fase de auditoria.
A análise prévia da CGU, prevista no rito habitual e que agora será dispensada, teria o objetivo de verificar se o contrato realmente existiu, se há direito à cobertura do fundo, se há mais de um contrato por mutuário (o fundo só pode cobrir um deles) e se os valores foram atualizados corretamente.
Existe um detalhe crucial: a origem dos recursos emprestados. Se o dinheiro veio do FGTS, a taxa de juros usada na atualização é de 3,07% ao ano. Se eram recursos próprios das instituições financeiras, essa taxa sobe a 6,17% ao ano. Ou seja, um erro na verificação desse critério pode mais que dobrar o valor a ser pago pelo Tesouro Nacional.
A lei sancionada diz que os créditos com valores já apurados e marcados como auditados pela Caixa até 30 de junho de 2026 integrarão os chamados processos de novação —que consistem na assinatura de um novo contrato entre União e o credor, prevendo o pagamento. Antes, esse prazo havia sido travado em 31 de agosto de 2017.
Além disso, o texto autoriza a Caixa a fazer “análise documental simplificada” em todos os processos e aceitar a certidão de matrícula do imóvel como documento para comprovar que o financiamento foi feito com recursos próprios das instituições financeiras —o que implica uma taxa de juros maior na atualização dos valores devidos.
Trabalhos já realizados pelos auditores encontraram erros em até 22% dos contratos analisados, a depender do período de referência, quando se trata da indicação da origem de recursos. Técnicos veem risco de erros ainda maiores com a flexibilização das demais etapas de verificação.
O Tesouro já vinha conduzindo processos do chamado “rito simplificado” desde 2023, mas houve a avaliação no governo de que era preciso ampliar o alcance dessa modalidade.
A lei orçamentária de 2025 reservou R$ 32,2 bilhões para efetuar esses pagamentos, mas só R$ 7,3 bilhões foram executados até agora. Segundo técnicos defensores da aceleração, os processos junto à CGU são morosos e acabam travando os pagamentos. Com o esgotamento do prazo, havia risco de aumento significativo nos valores devidos pela União, por isso a opção de flexibilizar as regras.
A CGU manterá a atribuição de fiscalizar os contratos após a novação, inclusive podendo exigir novos pagamentos do Tesouro, caso o valor tenha sido subestimado, ou restituições das instituições financeiras, caso o montante pago tenha superado o valor efetivamente devido. Defensores da medida não veem risco de fragilização do controle, posição da qual os auditores discordam nos bastidores.
A Emgea disse que, dessa forma, “a instrução dos processos de novação se torna mais ágil, beneficiando os agentes financeiros e, consequente, a assinatura dos contratos, acelerando o recebimento dos créditos”.
Os créditos bilionários de FCVS são o principal ativo da empresa. Só no ano passado, a Emgea recebeu R$ 5,1 bilhões do Tesouro referentes a essas dívidas. Já no primeiro semestre deste ano, os ingressos somaram R$ 1,6 bilhão.
Não há informações públicas sobre a fatia da empresa nos R$ 40 bilhões já homologados pela Caixa, mas a empresa declarou em seu balanço ter R$ 8,77 bilhões em créditos do FCVS, segundo a posição do fim de junho deste ano.
A companhia informou, em nota, ter a expectativa não só de acelerar os processos já em andamento, mas também de gerar novos pedidos. “Ainda não temos os valores envolvidos”, disse.





