segunda-feira, dezembro 1, 2025

Luis Fernando Verissimo criticou a censura no cinema – 01/12/2025 – Folha 105 anos

A censura brasileira chegou à “apoteose do ridículo” quando liberou “Laranja Mecânica“, de Stanley Kubrick, sem cortes, mas com bolinhas pretas tapando a nudez dos atores. Luis Fernando Verissimo escreveu sobre o caso em crônica publicada na Folha, em 1982.

O escritor gaúcho imaginou os retocadores no laboratório, numa corrida contra a data de lançamento, obrigados a “caprichar na bolinha” e “acertar sempre no alvo”.

“‘Você deixou passar um. Ou uma, no caso’, dizia um. ‘Deixa ver. Mas isso não é’, respondia outro. ‘Como, não é? Claro que é.’ ‘Tem certeza?’ ‘Eu conheço uma parte pudenda quando vejo, meu caro. Bolinha nela’.”

Verissimo acreditava que “foi o fracasso das bolinhas pretas que determinou a liberação da censura“. Depois, a censura passou a classificar filmes com justificativas: “Cenas de sexo explícito”, “Linguagem sugestiva”, “Violência moderada”.

O escritor imaginou como seriam os certificados de obras clássicas. “Cinderela” teria “cenas de revolta social e fetichismo com pé”. “Branca de Neve e os Sete Anões”: “sugestão de sexo grupal, morbidez, necrofilia”. A Bíblia: “incesto, parricídio, matricídio, fratricídio, infanticídio, genocídio, sodomia, onanismo, adultério, messianismo”. “Tom e Jerry”: “cenas de nudez, cenas de violência e extrema tensão”.

“Mas, enfim, tudo é preferível às bolinhas pretas”, concluiu.

Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.

Censura (9/1/1982)

A censura de cinema chegou a uma espécie de apoteose do ridículo no Brasil quando liberou, finalmente, o filme A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick sem cortes mas com bolinhas. Sim, nas cenas de nu, ou de nus, bolinhas pretas tapavam as partes pudendas. O pudonor nacional foi resguardado, mas ali, ali. Não fizeram um bom trabalho.

Posso imaginar os retocadores do filme no laboratório, numa corrida contra a data do lançamento. Obrigados não apenas a caprichar na bolinha como a acertar sempre no, digamos assim, alvo.

“Você deixou passar um. Ou uma, no caso.”

“Deixa ver. Mas isso não é.”

“Como, não é? Claro que é.”

“Tem certeza?”

“Eu conheço uma parte pudenda quando vejo, meu caro. Bolinha nela.”

E havia a questão do movimento. Muitas vezes, no filme, as partes pudendas não ficavam num lugar só. Tinham que acompanhar a ação dramática e locomoviam-se. A bolinha preta era obrigada a correr atrás e muitas vezes não chegava a tempo. Por alguns segundos uma parte pudenda ficava assim como o Júnior quando avança, sem cobertura e a moral da Nação desguarnecida. Tenho a impressão que foi o fracasso das bolinhas pretas que determinou a liberação da censura.

Houve uma espécie de catarse pelo absurdo. Hoje todo o Brasil pode ver os filmes que o filho do ministro vê. A censura limita-se a classificar o filme para esta ou aquela faixa de idade. Mas não tem como escapar do ridículo. Também dá a justificativa para a classificação e a justificativa vai impressa no certificado de censura e é usada na propaganda do filme. Por exemplo:

Cenas de sexo.

Cenas de sexo explícito.

Linguagem sugestiva.

Cenas de tensão.

Violência moderada.

Etc.

As frases não só estragam um pouco a expectativa do espectador — como aqueles famosos títulos de filmes em Portugal, que revelavam o final, “Foi o Mordomo”, ou “Morrem Todos Menos o Petiz” — como ficam cada vez mais minuciosas. Em breve teremos no certificado descrições detalhadas do que nos espera e do que ocasionou a censura.

Tensão moderada, linguagem chula e olhares ambíguos.Sugestão de homossexualismo, bestialismo moderado, referências ao modelo econômico.Glutonismo nojento, sexo moderado passando a explícito, possível alusão a rufianismo oficial.Tensão insignificante e risível, dois palavrões, esguicho de sangue no fim.Orgia, com anões besuntados, cenas de descarga aberta, indução ao cinismo.

Pode-se imaginar o que diriam os certificados de censura de algumas obras famosas.

“Cinderela”: cenas de revolta social e fetichismo com pé.

“A Paixão de Cristo”: cenas de violência e inconformismo político etc.

“Os Irmãos Karamazov”: cenas de epilepsia explícita, parricídio moderado.

“Pinóquio”: simbolismo lúbrico.

“Oliver Twist”: cenas de insubmissão, indução ao crime, antissemitismo.

“Branca de Neve e os Sete Anões”: cenas de desagregação familiar, violência, tensão moderada, sugestão de sexo grupal, morbidez, necrofilia.

Novo Dicionário da Língua Portuguesa: linguagem chula.

A Bíblia: cenas de sexo, cenas de violência, cenas de tensão, incesto, crítica de costumes, luta de classes, parricídio, matricídio, fratricídio, infanticídio, genocídio, idolatria, indução à subversão, linguagem sugestiva, sodomia, onanismo, adultério, ocultismo, tortura, curandeirismo, prevaricação, latrocínio, indução à vadiagem, messianismo.

“Tom e Jerry”: cenas de nudez, cenas de violência e extrema tensão.

“O Minotauro”: sugestão de bestialismo.

“Chapeuzinho Vermelho”: cenas de violência, cenas de tensão, travestismo.

Mas, enfim, tudo é preferível às bolinhas pretas.

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