Um desfile em um cinema pode parecer uma ideia inusitada, mas com uma boa direção criativa é possível mostrar que essas linguagens conversam. A Misci usou o Cine Marabá, na avenida Ipiranga, centro de São Paulo, como palco para apresentar sua nova coleção em parceria com o arquiteto e também cineasta Isay Weinfeld na noite desta quarta-feira (26).
O desfile-filme “A Dama do Interior” transformou a passarela em uma experiência que une cinema, identidade brasileira e arquitetura.
Para Airon Martin, diretor criativo da Misci, a parceria se insere em um percurso pessoal e criativo. “Isso tudo é parte de um processo, um projeto de aposentadoria mesmo. Eu quero aposentar no cinema”, disse à Folha. A moda o levou a esse caminho, que converge com outras artes. “Como eu não sou herdeiro, precisava ganhar dinheiro com a minha criação, e a Misci se tornou uma marca rentável graças a muito trabalho e consistência.”
É nesse trânsito entre linguagens, moda, arquitetura e cinema, que Airon e Weinfeld se encontram, alinhados pela ideia de que criar é atravessar fronteiras.
Para o arquiteto e cineasta, a elegância não está na opulência, mas na quietude. A mente por trás de obras como o Hotel Fasano e a Casa Cubo, em São Paulo, já exercia sua alta-costura na arquitetura e agora leva sua assinatura para a passarela.
Airon conta que, na primeira conversa com o arquiteto, os dois partilharam a percepção de que são criadores capazes de transitar entre diferentes linguagens. “Quero ser um criativo coerente com as referências e com o que acredito.”
Se a proposta do Verão 26 da Misci bebeu de Jorge Amado como inspiração, ao trazer referências literárias com uma versão moderna de “Tieta do Agreste” e dar foco à mulher nordestina, agora acompanhamos o segundo ato, com o Inverno 26. “Minha família é nordestina, as minhas principais referências são do Nordeste. De alguma forma, isso me influenciou. É meio natural. Não é escolha”, afirma.
A abordagem cinematográfica também não é novidade; ela acompanha seu trabalho. “Em coleções anteriores já trabalhávamos com referências como Glauber Rocha no processo criativo. O cinema sempre esteve presente na trajetória da marca.”
Assim como os projetos arquitetônicos de Isay Weinfeld, as roupas da coleção são peças estruturadas, com a geometria presente em cortes, recortes e drapeados.
A coleção inova com o roxo em sua paleta, aplicando-o tanto em couros inovadores como em tecidos fluidos que conferem leveza às silhuetas. Há também tons de verde, laranja e amarelo, que remetem às paisagens do sertão nordestino e do recôncavo baiano.
“Há uma cena em ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro’, de Glauber Rocha, que me marcou profundamente”, cita ele, fazendo referência ao momento em que Odete Lara aparece com uma roupa roxa esvoaçante.
A composição dos looks equilibra peças de alfaiataria com crochê manual e modelagens fluidas. A dualidade entre estrutura e movimento é expressa em tops estruturados, detalhes geométricos e texturizados estabelecem um diálogo direto com a linguagem de Isay Weinfeld.
O algodão surge como matéria-prima principal, assim como o couro. A coleção também apresenta peças em brim, jacquards e técnicas culturais, como o bordado filé, tradicional de Alagoas, e o crochê manual, que ganha novas versões para o inverno. As estampas, assinadas por Isabel Moura, retomam a miscigenação e resgatam a memória, inspiradas na estética de filmes antigos.
Para Airon, a moda é uma área que pede inspiração externa. “Como alguém que não vem propriamente da moda, sou um outsider nesse meio. Entendo que, para criar moda com autenticidade, não posso me alimentar apenas de moda”.
Ele cita que essa seria a receita para reproduzir tendências passageiras. “Prefiro buscar referências no teatro, no cinema – inclusive, estudo teatro”.




